PADRE CÍCERO ROMÃO BATISTA
O Padre Cícero Romão Batista nasceu na cidade do Crato, região Sul do Estado do Ceará, em 24 de março de 1.844. Filho de Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, carinhosamente chamada Quinô.
Desde cedo o menino Cícero demonstrou interesse pela vida sacerdotal, pois era sempre visto na igreja, ora ajudando o vigário nas suas tarefas, ora lendo histórias dos santos, inspirando-se na vida de São Francisco de Sales decidido a manter-se em permamente castidade, conforme está escrito em seu testamento.
Aos 16 anos de idade matriculou-se no colégio do renomado Padre Rolim, em Cajazeiras, Paraíba, em 1.860, onde ficou menos de dois anos, pois, com a morte inesperada do pai, vítima de cólera, em 1.862, teve que interromper os estudos e voltar para casa, a fim de cuidar da família – a mãe e duas irmãs. A crise financeira decorrente da morte do pai, transtornou a todos e só aos 21 anos de idade, com a ajuda do seu padrinho de crisma, Coronel Antônio Luiz Alves Pequeno, Cícero ingressou no Seminário de Fortaleza, em 1.865. Cinco anos depois foi ordenado sacerdote. Em janeiro de 1.871 retornou a Crato, onde ficou aguardando nomeação para prestar serviço em alguma paróquia. Em 24 de dezembro do mesmo ano, atendendo a convite do Professor Semeão Correia de Macêdo, celebrou pela primeira vez no povoado de Juazeiro, onde permaneceu três dias em contato com o povo, tendo decidido poucos meses depois fixar residência ali, na função de capelão. Tão logo chegou tratou de melhorar a capelinha exigida em 1.827 pelo primeiro capelão, Padre Pedro Ribeiro de Carvalho, adquirindo várias imagens com o fruto das esmolas dos devotos.
Foi o começo de uma obra que, anos depois, perpetuou a memória do padre manso e bondoso, austero quando necessário, piedoso e trabalhador que viria a ser cognominado de PATRIARCA DO NORDESTE.
Naquela época, sob o ponto de vista comercial, o povoado de Juazeiro oferecia pouca coisa aos seus habitantes. Não havia economia de mercado propriamente dita. Imperava a miséria e a marginalidade despontava como conseqüência natural. A esperança de uma mudança nesse quadro era representada pela presença do padre.
Assim, o jovem sacerdote tratou de restabelecer a ordem e os bons costumes do ambiente, conquistando rapidamente a simpatia dos habitantes, tornando-se autêntico líder da comunidade. Juazeiro experimentou, então, os primeiros passos de crescimento, atraindo pessoas da vizinhança, curiosas por conhecer o capelão que tinha vindo do Crato.
De início, o padre Cícero gozava da estima e confiança do novo bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, bem como do bispo anterior, dom Luís Antônio dos Santos, para quem padre Cícero era um anjo.
Consta que em agosto de 1.884, quando de visita pastoral ao Crato, dom Joaquim fez questão de enaltecer o trabalho do padre Cícero. De passagem pelo povoado de Juazeiro, para consagrar a capela de Nossa Senhora das Dores, iniciada pelo Padre Cícero, em 1.875, ele deixou escrito ali o seguinte: "A capela começada pelo padre Cícero Romão Batista, sacerdote inteligente, modesto e virtuoso, é um monumento que atesta eloqüentemente o poder da fé da Igreja Católica Romana, pois é admirável que um sacerdote pobre tenha podido construir um templo vasto e arquitetônico em tempos anormais quais aqueles que atravessa esta diocese assolada pela seca, fome e peste". Posteriormente acrescentou: " A virtude do padre Cícero enche todo o vale do Cariri".
O bispo, porém, não sustentou essa opinião por muito tempo, porque algo de muito grave aconteceu para martirizar a vida do "sacerdote inteligente, modesto e virtuoso", sendo dom Joaquim a figura central desse martírio.
Tudo começou no dia 6 de março de 1.889.
Ao participar de uma comunhão geral, oficiada pelo padre Cícero, a beata Maria de Araújo não pôde engolir a hóstia consagrada porque esta se transformava numa substância vermelha, hematóide.
Tal fenômeno se repetiu várias vezes na presença do público, sendo mais tarde testemunhado também por outros padres e médicos, os quais, inclusive, chegaram a emitir atestado, concluindo tratar-se de fato subrenatural para o qual não era possível encontrar explicação científica.
Durante algum tempo o fenômeno permaneceu em sigilo, até ser proclamado como milagre, em sete de julho do mesmo ano, por iniciativa de monsenhor Francisco Monteiro, Reitor do Seminário do Crato, o qual organizou uma romaria de cerca de três mil pessoas que saíram de Crato para Juazeiro, a fim de observar a transformação da hóstia em sangue.
A partir daí, Juazeiro virou centro de peregrinação – o embrião das grandiosas romarias de hoje; e quebra-se a tranqüilidade da vida sacerdotal do padre Cícero, sobre quem desaba uma campanha de inveja, de intrigas e perseguições.
Como era de se esperar, o fato terminou chegando ao conhecimento do bispo dom Joaquim, que escreveu ao padre Cícero, pedindo um relatório completo do ocorrido. Na verdade, ele chegou até a repreender o padre Cícero, com firmeza, por não ter sido informado de imediato dos "fatos extraordinários" ocorridos em Juazeiro, e considerou sua negligência como sendo uma quebra do voto clerical de obediência. Mas, não chegou a ser hostil, fazendo questão de ressaltar que confiava na sinceridade do padre Cícero e o julgava incapaz de qualquer embuste.
Padre Cícero atende à solicitação de dom Joaquim e remete o tão esperado relatório sobre o "milagre", uma peça que, segundo o historiador americano Ralph Della Cava, é um dos documentos mais curiosos da "Questão Religiosa" de Juazeiro. ("Milagre em Juazeiro", 1977).
Como o relatório nada esclarecia sobre a procedência do sangue, do Joaquim raciocinou que, se ele era oriundo da hóstia consagrada, tratava-se, realmente, de um fato miraculoso que merecia ser divulgado pelo mundo inteiro; se, por outro lado, o sangue era da própria beata, então seria incoerência atestar que a hóstia se tivesse transformado em sangue de Jesus Cristo, como todos acreditavam.
Inicialmente, dom Joaquim usou apenas a estratégia de permanecer distanciado do assunto, esperando que ele se diluísse por mesmo, caindo no esquecimento geral. Enquanto isso, as romarias se acentuavam e o número de crentes no "milagre" crescia de forma notável afamando o padre Cícero e a beata Maria de Araújo.
Um fato novo, porém, com o qual o bispo não contava, aconteceu para dar ponto positivo ao "milagre". É que um atestado passado pelo médico Dr. Marcos Madeira, diplomado no Rio de Janeiro, conferindo ao fato o caráter de sobrenatural, foi divulgado pela imprensa de forma sensacionalista e, por conta disso a reação da população católica instruída do Nordeste não se fez esperar.
Irritado, o bispo ordenou, então, que o padre Cícero comparecesse ao palácio episcopal em Fortaleza, com urgência, para ser submetido a um interrogatório.
A crença no "milagre" estava mesmo fadada a obter o maior êxito, pois outro médico, o Dr. Idelfonso Correia Lima e o farmacêutico Joaquim Secundo Chaves, convencidos da miraculosidade do fenômeno da transformação da hóstia em sangue, assinaram também um atestado, endossando o que fora afirmado pelo Dr. Marcos Madeira.
Estando a evolução dos acontecimentos a ameaçar um final desastroso, não restou a dom Joaquim outra alternativa senão a de formar uma Comissão de Inquérito com sacerdotes competentes, jurídica e teologicamente, para verificar "in loco" o tão extraordinário fenômeno que todos teimavam em considerar milagroso.
Tal comissão, considerada de alto nível, foi constituída pelos padres Clicério da Costa Lobo, chefe –comissário e Francisco Antero Ferreira, secretário. Os trabalhos de investigação se iniciaram em nove de setembro de 1.891, após três dias de recolhimento e orações, Seguindo orientações superiores, a comissão levou a beata Maria de Araújo para a Casa de Caridade do Crato, a fim de que seus trabalhos pudessem ser conduzidos sem a interferência do padre Cícero. Mesmo assim o fato extraordinário se repetiu. E a comissão maravilhada ante a perspectiva de estar assistindo a um milagre autêntico, concluiu o inquérito dando parecer favorável.
O resultado não agradou a dom Joaquim que, em 19 de julho, já se antecipara optando por uma Decisão Interlocutória, proibindo o culto aos panos ensanguentados e exigindo uma retratação pública do padre Cícero que devia dizer ao povo que não acreditava naquilo que acreditava. Outra comissão sob a chefia do padre Alexandrino de Alencar. Em dois dias, de 20 a 22 de abril de 1.892, esta concluiu as investigações com parecer desfavorável ao "milagre" e que serviu de orientações aos censores eclesiásticos em Roma, culminando com a pena máxima de excomunhão, que não foi posta em prática em face da perigosa repercussão que certamente iria causar.
Suspenso de ordem, proibido de oficiar atos religiosos, padre Cícero a tudo se submeteu com resignação. Foi a Roma, por convocação superior, lá permanecendo quase nove meses. Lá reconquistou o direito de celebrar missa e, regressando a Juazeiro, estava convicto de que seria reabilitado pela Igreja. Por fim, novas sanções lhe foram impostas, sendo definitivamente suspenso de ordem.
Os romeiros, que não podiam encontrá-lo na igreja, se conformavam em ouvi-lo diariamente em sua casa, em busca de conselhos, bem como de proteção espiritual. E ele atendia a todos. Recebia e distribuía esmolas. Aconselhava-os oralmente e por escrito. Era o padrinho de todos. Logo a seguir, privado dos misteres religiosos, padre Cícero dedicou-se à política, atendendo a apelos dos amigos, como Antônio Nogueira Acioli, substituído na chefia da presidência do Estado do Ceará pelo coronel Franco Rabelo, mais para evitar que mãos estranhas conduzissem os destinos de sua cidade, com a mesma ordem que ele conseguira até então.
Ao lado do padre Alencar Peixoto, Dr. Floro Bartolomeu da Costa e outros amigos, padre Cícero fez sentir a sua ação política, empreendendo o movimento pró-emancipação de Juazeiro da jurisdição do Crato, fato consumado com êxito em 22 de julho de 1.911. Com autonomia municipal, Juazeiro teve na pessoa do padre Cícero o seu primeiro prefeito, cuja posse aconteceu em 4 de outubro do mesmo ano. O padre Alencar Peixoto não gostou, já que reclamava para si esse direito, pois foi pensando naquele cargo que ele abraçara o movimento de independência e, inconformado, rompeu a amizade com padre Cícero e Dr. Floro, saiu de Juazeiro e depois lançou um livro: "Juazeiro do Cariri", onde faz severas críticas aos dois ex-amigos. Com isso, quem ganhou foi Dr. Floro que, ao lado e à sombra do padre Cícero, desfrutando do seu enorme prestígio, conseguiu ser o verdadeiro chefe político de Juazeiro, sendo depois eleito deputado estadual e deputado federal.
Em 1.913, padre Cícero passaria a ser novamente o centro de acirrada polêmica política, depois de ter sido afastado do cargo de prefeito (11 de Fevereiro) pelo Coronel Franco Rabelo, presidente do Estado do Ceará. Dr. Floro, na verdade, fôra convocado pelo Partido Republicano Conservador para a chefia de uma revolução para depor Franco Rabelo do governo cearense, eleito que fôra pelo partido contrário. Historiadores acreditaram ao padre a liderança do movimento sedicioso o que sempre negou. Todos, porém, concordam que a participação dele foi necessária, pois somente ele, com seu indiscutível carisma e liderança seria capaz de conseguir a adesão dos combatentes. Armas, munição e estratégia, ficaram a cargo exclusivo de Dr. Floro.
As tropas rabelistas, aquarteladas em Crato, apesar de muito bem municiadas, foram derrotadas no primeiro combate realizado no Cariri. Depois, os rebeldes seguiram em caminhada vitoriosa com destino a Fortaleza, combatendo e vencendo as forças do governo que encontravam pelo caminho. Movimento triunfou. Franco Rabelo foi deposto. Dr. Floro cresceu politicamente a nível nacional. Padre Cícero foi reconduzido ao cargo de Prefeito, onde permaneceu até 1.927, onde terminou arranjando um punhado de inimigos que passaram a criticá-lo chamando-o de protetor de bandidos.
Numa retrospectiva geral da vida do padre Cícero, constata-se alaramente ter sido ele uma figura realmente importante. Foi ele quem introduziu o hábito de se usar no pescoço o rosário da Mãe de Deus, costume até hoje amplamente espalhado em todo o Nordeste Brasileiro. Fundou as Conferências Vicentinas e o Apostolado da Oração, ainda hoje em funcionamento. Muito contribuiu para a educação de seu povo, dando aulas particulares, custeando despesas de estudante pobres e ajudando financeiramente na criação de novas escolas, tendo especialmente para este fim deixado grande parte de seus bens, como herança, à Congregação Salesiana. Foi pioneiro da campanha encetada para a construção do Seminário do Crato. Na terrível seca de 1877 desempenhou papel de destaque, tendo intercedido junto aos poderes competentes, no sentido de serem as vítimas socorridas, recebendo toda a assistência possível na época.
No global, sua atuação extrapolou os limites de sua ação como valoroso pastor de almas. Exerceu grande influência no desenvolvimento da agricultura, incentivando o cultivo da mandioca, da cana de açúcar, etc.; da pecuária, promovendo a introdução do gado zebu e da indústria e comércio, estimulando o surgimento de novas empresas que aceleraram o crescimento de Juazeiro e da região do Cariri.
Praticou, também, a medicina popular, como forma alternativa de cura, prescrevendo remédios caseiros à base de ervas medicinais, com excelentes resultados, e contribuindo desta forma para a expansão do ramo de comércio da fitoterapia. Aliás, até hoje muita gente continua repetindo as receitas do "Padim Ciço".
No campo religioso, direcionou uma devoção toda especial a Nossa Senhora das Dores, padroeira de Juazeiro, e que juntamente com a romaria dedicada à sua própria pessoa, após a sua morte, terminou por transformar Juazeiro num dos maiores centros de religiosidade popular da América Latina.
E, finalmente, fez florescer um tipo "sui generis" de artesanato bastante apreciado no Brasil e no exterior e que absorve um número incalculável de artistas. Essa atividade, até hoje em evidência, representar o meio de vida, a fonte de ganho e de sustentação financeira de milhares de pessoas.
Padre Cícero faleceu no dia 20 de julho de 1.934, com 90 anos de idade, em Juazeiro do Norte, acometido de renitente enfermidade renal e outras complicações orgânicas. Sua morte, como era de se esperar, causou profunda e incontida consternação no seio da população local assim como aos seus milhares de devotos espalhados por todo o Nordeste do Brasil.
Muito pensaram que morto o ídolo, a cidade que ele fundou e a devoção à sua pessoa acabariam em pouco tempo. Nada disso, porém, aconteceu.
A cidade de Juazeiro do Norte é hoje a maior do interior cearense, com contínuo ritmo de desenvolvimento a ele continua sendo uma das figuras mais destacadas do clero brasileiro, objeto de estudo por parte de historiadores e cientistas sociais, em função de quem foram defendidas muitas teses de mestrado e doutorado no País e no exterior, e seu nome transformou-se num robusto volume editorial, com mais de uma centena de obras publicadas a seu respeito, afora um incontável número de artigos e trabalhos diversos espalhados pela imprensa em geral, sendo inclusive tema de filmes e documentários de televisão.
Rejeitado pela Igreja, tornou-se o verdadeiro santo dos nordestinos e como tal é venerado à revelia de Roma.
Em todas as partes do Nordeste há referências às mais diversas curas e graças alcançadas por sua intercessão, muitas das quais considerada como autênticos milagres. A fé do povo no seu santo é inabalável. Padre Cícero deixou o mundo dos vivos, mas, continua vivendo no coração de todas que cultuam sua memória.
Bibliografia:
Benevides, Aldenor - padre Cícero e Juazeiro editora artes gráficas Regina - 1969
Teófilo, Rodolfo - A sedição do Juazeiro editora terra de sol - 1969
Barbosa, Walter - padre Cícero - pessoas, fotos e fatos Editora Henriqueta Galeno - 1980
Sobreira, padre Azarias - O patriarca de Juazeiro - editora vozes - 1968
Anselmo, Otacílio - Padre Cícero - mito e realidade Editora civilização brasileira - 1968
Filho, M. B. Lourenço - Juazeiro do padre Cícero - Editora edições melhoramentos
Oliveira, Amalia Xavier de - O padre Cícero que eu conheci Editora gráfica olímpica Ltda. - 1969
Rabello, Sylvio - Os artesãos do padre cícero Editora instituto Joaquim Nabuco de pesquisas sociais - 1967
Morel, Edimar - padre Cícero - O santo do Juazeiro Editora Civilização Brasileira S/A - 1966
Nascimento, Francisco Fernandes do - Milagres na terra violenta - padre Cícero, o santo rebelde - Editora gráfica Record - 1968
Marques, Daniel Walker Almeida - pesquisador e organizador de texto - coleção o pensamento vivo de padre Cícero - Martin Claret editores - 1988
Barbosa, Geraldo Menezes - A história do padre Cícero ao alcance de todos
Araújo, Raimundo - Juazeiro do padre Cícero e padre Cícero do Juazeiro
O Padre Cícero Romão Batista nasceu na cidade do Crato, região Sul do Estado do Ceará, em 24 de março de 1.844. Filho de Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, carinhosamente chamada Quinô.
Desde cedo o menino Cícero demonstrou interesse pela vida sacerdotal, pois era sempre visto na igreja, ora ajudando o vigário nas suas tarefas, ora lendo histórias dos santos, inspirando-se na vida de São Francisco de Sales decidido a manter-se em permamente castidade, conforme está escrito em seu testamento.
Aos 16 anos de idade matriculou-se no colégio do renomado Padre Rolim, em Cajazeiras, Paraíba, em 1.860, onde ficou menos de dois anos, pois, com a morte inesperada do pai, vítima de cólera, em 1.862, teve que interromper os estudos e voltar para casa, a fim de cuidar da família – a mãe e duas irmãs. A crise financeira decorrente da morte do pai, transtornou a todos e só aos 21 anos de idade, com a ajuda do seu padrinho de crisma, Coronel Antônio Luiz Alves Pequeno, Cícero ingressou no Seminário de Fortaleza, em 1.865. Cinco anos depois foi ordenado sacerdote. Em janeiro de 1.871 retornou a Crato, onde ficou aguardando nomeação para prestar serviço em alguma paróquia. Em 24 de dezembro do mesmo ano, atendendo a convite do Professor Semeão Correia de Macêdo, celebrou pela primeira vez no povoado de Juazeiro, onde permaneceu três dias em contato com o povo, tendo decidido poucos meses depois fixar residência ali, na função de capelão. Tão logo chegou tratou de melhorar a capelinha exigida em 1.827 pelo primeiro capelão, Padre Pedro Ribeiro de Carvalho, adquirindo várias imagens com o fruto das esmolas dos devotos.
Foi o começo de uma obra que, anos depois, perpetuou a memória do padre manso e bondoso, austero quando necessário, piedoso e trabalhador que viria a ser cognominado de PATRIARCA DO NORDESTE.
Naquela época, sob o ponto de vista comercial, o povoado de Juazeiro oferecia pouca coisa aos seus habitantes. Não havia economia de mercado propriamente dita. Imperava a miséria e a marginalidade despontava como conseqüência natural. A esperança de uma mudança nesse quadro era representada pela presença do padre.
Assim, o jovem sacerdote tratou de restabelecer a ordem e os bons costumes do ambiente, conquistando rapidamente a simpatia dos habitantes, tornando-se autêntico líder da comunidade. Juazeiro experimentou, então, os primeiros passos de crescimento, atraindo pessoas da vizinhança, curiosas por conhecer o capelão que tinha vindo do Crato.
De início, o padre Cícero gozava da estima e confiança do novo bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, bem como do bispo anterior, dom Luís Antônio dos Santos, para quem padre Cícero era um anjo.
Consta que em agosto de 1.884, quando de visita pastoral ao Crato, dom Joaquim fez questão de enaltecer o trabalho do padre Cícero. De passagem pelo povoado de Juazeiro, para consagrar a capela de Nossa Senhora das Dores, iniciada pelo Padre Cícero, em 1.875, ele deixou escrito ali o seguinte: "A capela começada pelo padre Cícero Romão Batista, sacerdote inteligente, modesto e virtuoso, é um monumento que atesta eloqüentemente o poder da fé da Igreja Católica Romana, pois é admirável que um sacerdote pobre tenha podido construir um templo vasto e arquitetônico em tempos anormais quais aqueles que atravessa esta diocese assolada pela seca, fome e peste". Posteriormente acrescentou: " A virtude do padre Cícero enche todo o vale do Cariri".
O bispo, porém, não sustentou essa opinião por muito tempo, porque algo de muito grave aconteceu para martirizar a vida do "sacerdote inteligente, modesto e virtuoso", sendo dom Joaquim a figura central desse martírio.
Tudo começou no dia 6 de março de 1.889.
Ao participar de uma comunhão geral, oficiada pelo padre Cícero, a beata Maria de Araújo não pôde engolir a hóstia consagrada porque esta se transformava numa substância vermelha, hematóide.
Tal fenômeno se repetiu várias vezes na presença do público, sendo mais tarde testemunhado também por outros padres e médicos, os quais, inclusive, chegaram a emitir atestado, concluindo tratar-se de fato subrenatural para o qual não era possível encontrar explicação científica.
Durante algum tempo o fenômeno permaneceu em sigilo, até ser proclamado como milagre, em sete de julho do mesmo ano, por iniciativa de monsenhor Francisco Monteiro, Reitor do Seminário do Crato, o qual organizou uma romaria de cerca de três mil pessoas que saíram de Crato para Juazeiro, a fim de observar a transformação da hóstia em sangue.
A partir daí, Juazeiro virou centro de peregrinação – o embrião das grandiosas romarias de hoje; e quebra-se a tranqüilidade da vida sacerdotal do padre Cícero, sobre quem desaba uma campanha de inveja, de intrigas e perseguições.
Como era de se esperar, o fato terminou chegando ao conhecimento do bispo dom Joaquim, que escreveu ao padre Cícero, pedindo um relatório completo do ocorrido. Na verdade, ele chegou até a repreender o padre Cícero, com firmeza, por não ter sido informado de imediato dos "fatos extraordinários" ocorridos em Juazeiro, e considerou sua negligência como sendo uma quebra do voto clerical de obediência. Mas, não chegou a ser hostil, fazendo questão de ressaltar que confiava na sinceridade do padre Cícero e o julgava incapaz de qualquer embuste.
Padre Cícero atende à solicitação de dom Joaquim e remete o tão esperado relatório sobre o "milagre", uma peça que, segundo o historiador americano Ralph Della Cava, é um dos documentos mais curiosos da "Questão Religiosa" de Juazeiro. ("Milagre em Juazeiro", 1977).
Como o relatório nada esclarecia sobre a procedência do sangue, do Joaquim raciocinou que, se ele era oriundo da hóstia consagrada, tratava-se, realmente, de um fato miraculoso que merecia ser divulgado pelo mundo inteiro; se, por outro lado, o sangue era da própria beata, então seria incoerência atestar que a hóstia se tivesse transformado em sangue de Jesus Cristo, como todos acreditavam.
Inicialmente, dom Joaquim usou apenas a estratégia de permanecer distanciado do assunto, esperando que ele se diluísse por mesmo, caindo no esquecimento geral. Enquanto isso, as romarias se acentuavam e o número de crentes no "milagre" crescia de forma notável afamando o padre Cícero e a beata Maria de Araújo.
Um fato novo, porém, com o qual o bispo não contava, aconteceu para dar ponto positivo ao "milagre". É que um atestado passado pelo médico Dr. Marcos Madeira, diplomado no Rio de Janeiro, conferindo ao fato o caráter de sobrenatural, foi divulgado pela imprensa de forma sensacionalista e, por conta disso a reação da população católica instruída do Nordeste não se fez esperar.
Irritado, o bispo ordenou, então, que o padre Cícero comparecesse ao palácio episcopal em Fortaleza, com urgência, para ser submetido a um interrogatório.
A crença no "milagre" estava mesmo fadada a obter o maior êxito, pois outro médico, o Dr. Idelfonso Correia Lima e o farmacêutico Joaquim Secundo Chaves, convencidos da miraculosidade do fenômeno da transformação da hóstia em sangue, assinaram também um atestado, endossando o que fora afirmado pelo Dr. Marcos Madeira.
Estando a evolução dos acontecimentos a ameaçar um final desastroso, não restou a dom Joaquim outra alternativa senão a de formar uma Comissão de Inquérito com sacerdotes competentes, jurídica e teologicamente, para verificar "in loco" o tão extraordinário fenômeno que todos teimavam em considerar milagroso.
Tal comissão, considerada de alto nível, foi constituída pelos padres Clicério da Costa Lobo, chefe –comissário e Francisco Antero Ferreira, secretário. Os trabalhos de investigação se iniciaram em nove de setembro de 1.891, após três dias de recolhimento e orações, Seguindo orientações superiores, a comissão levou a beata Maria de Araújo para a Casa de Caridade do Crato, a fim de que seus trabalhos pudessem ser conduzidos sem a interferência do padre Cícero. Mesmo assim o fato extraordinário se repetiu. E a comissão maravilhada ante a perspectiva de estar assistindo a um milagre autêntico, concluiu o inquérito dando parecer favorável.
O resultado não agradou a dom Joaquim que, em 19 de julho, já se antecipara optando por uma Decisão Interlocutória, proibindo o culto aos panos ensanguentados e exigindo uma retratação pública do padre Cícero que devia dizer ao povo que não acreditava naquilo que acreditava. Outra comissão sob a chefia do padre Alexandrino de Alencar. Em dois dias, de 20 a 22 de abril de 1.892, esta concluiu as investigações com parecer desfavorável ao "milagre" e que serviu de orientações aos censores eclesiásticos em Roma, culminando com a pena máxima de excomunhão, que não foi posta em prática em face da perigosa repercussão que certamente iria causar.
Suspenso de ordem, proibido de oficiar atos religiosos, padre Cícero a tudo se submeteu com resignação. Foi a Roma, por convocação superior, lá permanecendo quase nove meses. Lá reconquistou o direito de celebrar missa e, regressando a Juazeiro, estava convicto de que seria reabilitado pela Igreja. Por fim, novas sanções lhe foram impostas, sendo definitivamente suspenso de ordem.
Os romeiros, que não podiam encontrá-lo na igreja, se conformavam em ouvi-lo diariamente em sua casa, em busca de conselhos, bem como de proteção espiritual. E ele atendia a todos. Recebia e distribuía esmolas. Aconselhava-os oralmente e por escrito. Era o padrinho de todos. Logo a seguir, privado dos misteres religiosos, padre Cícero dedicou-se à política, atendendo a apelos dos amigos, como Antônio Nogueira Acioli, substituído na chefia da presidência do Estado do Ceará pelo coronel Franco Rabelo, mais para evitar que mãos estranhas conduzissem os destinos de sua cidade, com a mesma ordem que ele conseguira até então.
Ao lado do padre Alencar Peixoto, Dr. Floro Bartolomeu da Costa e outros amigos, padre Cícero fez sentir a sua ação política, empreendendo o movimento pró-emancipação de Juazeiro da jurisdição do Crato, fato consumado com êxito em 22 de julho de 1.911. Com autonomia municipal, Juazeiro teve na pessoa do padre Cícero o seu primeiro prefeito, cuja posse aconteceu em 4 de outubro do mesmo ano. O padre Alencar Peixoto não gostou, já que reclamava para si esse direito, pois foi pensando naquele cargo que ele abraçara o movimento de independência e, inconformado, rompeu a amizade com padre Cícero e Dr. Floro, saiu de Juazeiro e depois lançou um livro: "Juazeiro do Cariri", onde faz severas críticas aos dois ex-amigos. Com isso, quem ganhou foi Dr. Floro que, ao lado e à sombra do padre Cícero, desfrutando do seu enorme prestígio, conseguiu ser o verdadeiro chefe político de Juazeiro, sendo depois eleito deputado estadual e deputado federal.
Em 1.913, padre Cícero passaria a ser novamente o centro de acirrada polêmica política, depois de ter sido afastado do cargo de prefeito (11 de Fevereiro) pelo Coronel Franco Rabelo, presidente do Estado do Ceará. Dr. Floro, na verdade, fôra convocado pelo Partido Republicano Conservador para a chefia de uma revolução para depor Franco Rabelo do governo cearense, eleito que fôra pelo partido contrário. Historiadores acreditaram ao padre a liderança do movimento sedicioso o que sempre negou. Todos, porém, concordam que a participação dele foi necessária, pois somente ele, com seu indiscutível carisma e liderança seria capaz de conseguir a adesão dos combatentes. Armas, munição e estratégia, ficaram a cargo exclusivo de Dr. Floro.
As tropas rabelistas, aquarteladas em Crato, apesar de muito bem municiadas, foram derrotadas no primeiro combate realizado no Cariri. Depois, os rebeldes seguiram em caminhada vitoriosa com destino a Fortaleza, combatendo e vencendo as forças do governo que encontravam pelo caminho. Movimento triunfou. Franco Rabelo foi deposto. Dr. Floro cresceu politicamente a nível nacional. Padre Cícero foi reconduzido ao cargo de Prefeito, onde permaneceu até 1.927, onde terminou arranjando um punhado de inimigos que passaram a criticá-lo chamando-o de protetor de bandidos.
Numa retrospectiva geral da vida do padre Cícero, constata-se alaramente ter sido ele uma figura realmente importante. Foi ele quem introduziu o hábito de se usar no pescoço o rosário da Mãe de Deus, costume até hoje amplamente espalhado em todo o Nordeste Brasileiro. Fundou as Conferências Vicentinas e o Apostolado da Oração, ainda hoje em funcionamento. Muito contribuiu para a educação de seu povo, dando aulas particulares, custeando despesas de estudante pobres e ajudando financeiramente na criação de novas escolas, tendo especialmente para este fim deixado grande parte de seus bens, como herança, à Congregação Salesiana. Foi pioneiro da campanha encetada para a construção do Seminário do Crato. Na terrível seca de 1877 desempenhou papel de destaque, tendo intercedido junto aos poderes competentes, no sentido de serem as vítimas socorridas, recebendo toda a assistência possível na época.
No global, sua atuação extrapolou os limites de sua ação como valoroso pastor de almas. Exerceu grande influência no desenvolvimento da agricultura, incentivando o cultivo da mandioca, da cana de açúcar, etc.; da pecuária, promovendo a introdução do gado zebu e da indústria e comércio, estimulando o surgimento de novas empresas que aceleraram o crescimento de Juazeiro e da região do Cariri.
Praticou, também, a medicina popular, como forma alternativa de cura, prescrevendo remédios caseiros à base de ervas medicinais, com excelentes resultados, e contribuindo desta forma para a expansão do ramo de comércio da fitoterapia. Aliás, até hoje muita gente continua repetindo as receitas do "Padim Ciço".
No campo religioso, direcionou uma devoção toda especial a Nossa Senhora das Dores, padroeira de Juazeiro, e que juntamente com a romaria dedicada à sua própria pessoa, após a sua morte, terminou por transformar Juazeiro num dos maiores centros de religiosidade popular da América Latina.
E, finalmente, fez florescer um tipo "sui generis" de artesanato bastante apreciado no Brasil e no exterior e que absorve um número incalculável de artistas. Essa atividade, até hoje em evidência, representar o meio de vida, a fonte de ganho e de sustentação financeira de milhares de pessoas.
Padre Cícero faleceu no dia 20 de julho de 1.934, com 90 anos de idade, em Juazeiro do Norte, acometido de renitente enfermidade renal e outras complicações orgânicas. Sua morte, como era de se esperar, causou profunda e incontida consternação no seio da população local assim como aos seus milhares de devotos espalhados por todo o Nordeste do Brasil.
Muito pensaram que morto o ídolo, a cidade que ele fundou e a devoção à sua pessoa acabariam em pouco tempo. Nada disso, porém, aconteceu.
A cidade de Juazeiro do Norte é hoje a maior do interior cearense, com contínuo ritmo de desenvolvimento a ele continua sendo uma das figuras mais destacadas do clero brasileiro, objeto de estudo por parte de historiadores e cientistas sociais, em função de quem foram defendidas muitas teses de mestrado e doutorado no País e no exterior, e seu nome transformou-se num robusto volume editorial, com mais de uma centena de obras publicadas a seu respeito, afora um incontável número de artigos e trabalhos diversos espalhados pela imprensa em geral, sendo inclusive tema de filmes e documentários de televisão.
Rejeitado pela Igreja, tornou-se o verdadeiro santo dos nordestinos e como tal é venerado à revelia de Roma.
Em todas as partes do Nordeste há referências às mais diversas curas e graças alcançadas por sua intercessão, muitas das quais considerada como autênticos milagres. A fé do povo no seu santo é inabalável. Padre Cícero deixou o mundo dos vivos, mas, continua vivendo no coração de todas que cultuam sua memória.
Bibliografia:
Benevides, Aldenor - padre Cícero e Juazeiro editora artes gráficas Regina - 1969
Teófilo, Rodolfo - A sedição do Juazeiro editora terra de sol - 1969
Barbosa, Walter - padre Cícero - pessoas, fotos e fatos Editora Henriqueta Galeno - 1980
Sobreira, padre Azarias - O patriarca de Juazeiro - editora vozes - 1968
Anselmo, Otacílio - Padre Cícero - mito e realidade Editora civilização brasileira - 1968
Filho, M. B. Lourenço - Juazeiro do padre Cícero - Editora edições melhoramentos
Oliveira, Amalia Xavier de - O padre Cícero que eu conheci Editora gráfica olímpica Ltda. - 1969
Rabello, Sylvio - Os artesãos do padre cícero Editora instituto Joaquim Nabuco de pesquisas sociais - 1967
Morel, Edimar - padre Cícero - O santo do Juazeiro Editora Civilização Brasileira S/A - 1966
Nascimento, Francisco Fernandes do - Milagres na terra violenta - padre Cícero, o santo rebelde - Editora gráfica Record - 1968
Marques, Daniel Walker Almeida - pesquisador e organizador de texto - coleção o pensamento vivo de padre Cícero - Martin Claret editores - 1988
Barbosa, Geraldo Menezes - A história do padre Cícero ao alcance de todos
Araújo, Raimundo - Juazeiro do padre Cícero e padre Cícero do Juazeiro
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